quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Dói-me o rim


Faz hoje 11 anos que tirei o meu rim esquerdo. O que terão feito com ele? O que farão os hospitais com os órgãos retirados? Na altura, eram questões que não me colocava, obnibulada que estava com a dor física, na horizontalidade de uma cama, com tubos que me entravam por todo o corpo. Foi no ainda aberto Hospital do Desterro, ao Intendente, hospital de paredes cor-de-vinho que ainda se vê, do lado direito, quando se desce a Almirante Reis. Estava no serviço de Urologia, praticamente dominado pelos chamados velhotes da próstata que se arrastavam pelos corredores, de pijamas às riscas, agarrados ao dispositivo do soro, escapando-se para o corredor para fumar um cigarrito proibido. A minha enfermaria, exclusivamente feminina,  era composta por cinco camas, mas havia uma que não era ocupada, constituindo uma espécie de cama de reserva. Ao meu lado direito ficou a D. Orlanda, desenganada pelo seu médico durante a minha estadia no hospital. Fecharam a cortina da privacidade, aquela à volta da cama, que normalmente fecham quando nos lavam ou fazem outros tratamentos, e nem se ouviam, médico e doente, tudo em surdina, murmurado, depois de ele se ir embora continuou tudo em silêncio, até o choro da D. Orlanda. Na cama em frente ficava a D.Fernanda, operada porque tinha a bexiga rota, segundo as próprias palavras e que gostava de contar anedotas que não tinham piada nenhuma. Fazia a festa, deitava os foguetes e apanhava os pauzinhos. Estávamos as duas deitadas, não nos víamos, só a ouvia, esganiçada: Segure a costura, segure a costura, que vou contar uma muito engraçada. E eu ria-me, porque às vezes rimo-nos de coisas que não têm piada nenhuma, porque a graça está aí. Ao lado dela, portanto na minha diagonal estava a avozinha, não teria muita idade, talvez uns 80 anos, mas como tinha a cabeleira toda branca chamávamos-lhe assim. Falava, falava todo o tempo, numa ladaínha interminável que já ninguém ouvia, dormitávamos, acordávamos, e ela lá estava a contar alto o que tinha sido a sua vida, numa interminável lengalenga, dia e noite, porque o hospital é um sítio onde o tempo não passa e deixa de haver noite e dia, entardecer, alvorada ou  crepúsculo. Posteriormente à minha saída deram-lhe alta, mas, como vivia sozinha, estava sempre a caminhar para as urgências de S.José. Um dia, ao subir uma daquelas indizíveis ladeiras que conduzem a este hospital, escorregou, partiu uma perna e lá ficou internada. Eu e a D.Fernanda ainda fomos vistá-la pouco antes do Natal ao Hospital de São Lázaro, mas a operação ao rim já não resolvera nada e a avozinha partiria em breve para junto dos seus santinhos e anjos, seguindo-se-lhe a D.Orlanda pouco tempo depois. Mas, era uma sala muito atípica para hospital. O meu trambolho sonoro e o da D.Fernanda, __seria muito pomposo chamar-lhes telemóveis__, tocavam a toda a hora, mas, ninguém se importava, era até o próprio pessoal que __a nosso pedido___, no-los punha a carregar; depois havia uma televisão encarrapitada num suporte de parede que se dignava dar um arzinho da sua graça a troco de algumas moedas, fosse isso a que horas fosse, mas, também ninguém lhe ligava ou se importava que ela estivesse ligada às vezes à meia-noite, nem a D.Orlanda se incomodava. A avozinha, indiferente àquela rival chamada tv, continuavas as suas litanias, quanto a nós, dormitávamos e acordávamos. Passei no hospital o domingo do referendo da regionalização, ora eu e a D. Fernanda, danadinhas por sair dali, nem que fosse por uma hora, chateámos toda a gente para ir votar. Lá conseguimos autorização, assinando um termo de responsabilidade e lá fomos numa ambulância dos bombeiros, a dois à hora, pois não podíamos apanhar grandes safanões, deitadas, cada uma agarrada à sua costura. Uma vez chegada à escola onde costumo votar, dispensei a cadeira de rodas, meia dúzia de passos separam a entrada das salas, e fui devagar, devagarinho, botar o meu voto, toda a mesa agradeceu e enalteceu o civismo. Depois, ainda fomos aos Olivais, à escola onde a minha colega de enfermaria costuma votar. Andámos toda a manhã nisto. Quando chegámos foi uma festa.O serviço era pequeno e muito familiar.  Elas já voltaram, elas já voltaram.
Se estou bem? Sim. Já não posso é dizer: doem-me os rins! E, continuo a ser centro das atenções, quando entro no café, e lá está um determinado grupo de velhotas, baixam a voz e cochicham, ainda dizendo 11 anos depois: ela só tem um rim! Mas, como são quase todas surdas, o cochicho sai alto, e eu ouço!!!!!!

2 comentários:

Paulo Matos disse...

Isabelita,
Então tu escreves "sosinha" com s?????
Ai Ai Ai....

Zoe disse...

caramba!
será que vou presa por isso???

se a fátima campos ferreira pode dizer benurões, então eu posso escrever sosinha com s!!!!

enfim, é tudo o que te ocorre dizer??