Pessimistas podem ser, mas têm um talento especial e subtil para animar os outros, o que retirará a este pessimismo um certo absolutismo de verdade incontestável. De vez em quando emergem estudos feitos por especialistas, ___não se sabe de que área científica, nem com que amostragem, nem com que metodologia, mas também, não isso interessa nada__ que chegam à conclusão que os portugueses são pessimistas, soturnos e consomem embalagens massivas de antidepressivos. Discordo em absoluto das conclusões destes peritos. Se há povo que sabe como levantar o ânimo e o moral do próximo, esse povo é o português.
Ora, se há coisa que desperte a curiosidade é um braço envolto em ligaduras e ao peito.
__ O que é lhe aconteceu?
__ Queimei-me com água a ferver.
__ Se fosse óleo de fritar era muito pior!
__ O que lhe aconteceu?
__ Queimei-me com água a ferver.
__ Se tivesse partido, era muito pior!
__ Então, o que foi isso?
__ Queimei-me com água a ferver.
__ Foi muita?
__ Um púcaro, para fazer uma caneca de chá.
__ Se fosse uma panela de água a ferver era pior!
E, a alma lusa fica reconfortada.
As salas de espera das urgências hospitalares são também um microcosmos de traços do nosso comportamento colectivo onde brota ao de cima o que temos de melhor, entre outras, a tal capacidade animar o próximo. Sentimentos de culpa são imediatamente dissolvidos em histórias semelhantes, para que o outro não se sinta só no mundo, carregando o pesado fardo. À mãe que sem querer deixou caír o aparelho de inalações em cima do pé do seu bebé, imediatamente se vai buscar a história da mulher do tio do primo do cunhado do sogro do vizinho de baixo, a quem aconteceu a mesmíssima coisa, ou à irmã que entalou a cabeça do dedo do irmão ao fechar o sofá, acidentes domésticos em que ninguém tem a culpa, mas todos se sentem culpados. Aliás, aquela sala de espera parecia o Vale da Culpa. À rapariga __cujo marido lhe tinha pedido para o ir levar ao trabalho e ela não foi e pouco depois teve um acidente de mota, e se sentia culpada por não acedido ao pedido__, perguntavam-lhe se ele não andava todos os dias de mota. Ainda o mesmo malogrado rapaz foi arrastado pela mota, tinha queimado as palmas das mãos, as pernas, tinha ossos à vista, mas acrescentou a mulher:__ Não tem nada partido, e logo um pequeno coro: Graças a Deus! Ora, digam lá se há no mumdo alguém capaz de animar alguém desta maneira?
Queria ainda falar de horários e atendimentos de serviços públicos de saúde. Os Centros de Saúde possuem um Atendimento Complementar, para tratar de casos que não necessitem de intervenção hospitalar e até para descongestionar o tempo de espera nas urgências.Foi ao final da manhã de sábado que me queimei com água a ferver, e como fiz logo bolhas, me estava a doer, e cada vizinha dava a sua sentença, decidi ir ao Atendimento Complementar do Centro de Saúde da minha área. Surpresa. O Centro fecha às duas. Bonito. Aliás, parecia uma cena de filme, portões fechados, barras de madeira nas portas, como se o cosmos inteiro me estivesse a fechar os portões.Não tive outro outro remédio senão ir às urgências hospitalares, esperar horas por uma coisa que poderia ter sido feita no Centro de Saúde, se ele estivesse aberto...Quanto ao atendimento em si, já dentro do gabinete médico, foi muito eficaz, rápido e muito profissional.
Naquelas andanças acabei por perder um anel de prata com uma pequena pedra, mas no meio daquele sofrimento, o anel acabou por perder importância e não me sentia com vontade de andar à procura do anel no meio do pé queimado do bebé e a culpa da mãe, das pernas queimadas do rapaz de mota e a culpa da mulher e da própria dor da minha pele queimada. O que eu queria mesmo, era sair dali, o mais rapidamente possível. Foi o que fiz.